- Mário Donato D’Angelo
Hoje acordei pensando na estranha convivência entre a vida e a existência.
Talvez porque vi, ontem à noite, um daqueles relógios antigos de parede, tic-tac, tic-tac, como um coração mecânico lembrando que o tempo não para. Ou talvez porque notei uma senhora sentada num banco da praça, olhando o nada com um sorriso calmo de quem não tem pressa nenhuma.
Fiquei ali, parado, pensando: afinal, o que envelhece? O que não envelhece?
A resposta veio quase sem querer: a vida não envelhece; velho é a existência.
A vida não se enruga dentro do tempo; quem se enruga é a existência, presa ao calendário, ao prazo, à obrigação.
A vida, não. A vida é sempre jovem, porque não tem passado nem presente, só um sonho, e esse sonho se chama futuro.
A vida nasceu antes de você existir, porque ela é infinita. Ela é extemporânea, sem idade, sem ruga. Quando você vive de verdade, tudo desaparece, o relógio, as contas, as exigências e só a vida permanece. Mas quando você se deixa orbitar pela existência, ela se esconde nos cantos fundos do coração, foge, se recolhe, quase sem querer.
A vida precisa da existência, é verdade, mas prefere viver longe dela, solta, onde a existência não penetra.
Já a existência tem endereço fixo: depende da chuva, do calor, do trânsito, do despertador que nos acorda sem poesia, do médico que receita comprimidos, das contas que vencem amanhã. A existência vive de “pode” e “não pode”, de “deve” e “não deve”.
É a irmã disciplinada e meio sisuda da vida.
Mas uma não sobrevive sem a outra...
A existência é o trilho, e a vida é o trem. Sem a existência, a vida se perde como sopro; sem a vida, a existência é só um calendário obediente, um corpo automático que esqueceu de sonhar.
É curioso como relógio e prazer moram em casas diferentes, como biologia e pensamento se evitam, como o amor e a carne, a lágrima e o sorriso parecem viver em ruas distantes. E, ainda assim, todos precisam uns dos outros.
O amor precisa da carne para abraçar;
a lágrima precisa do sorriso para se justificar;
o pensamento precisa da biologia para existir;
e até o relógio, tão tirano, precisa da vida para ter algum sentido.
Que a existência organize o dia, mas que a vida o encha de sentidos. Que o relógio marque a hora do almoço, mas que o sabor seja organizado pela vida.
E quando chegar a noite, essa fronteira diária entre viver e existir, que cada um durma como pode: a existência, com seu ronco pesado, e a vida, com seus sonhos leves.
Porque, no fim, pode até parecer que a vida se perde no tempo, mas ela só se esconde por pudor.
Amanhã cedo, quando ninguém olhar, ela estará de volta, sorrindo, como quem nunca foi embora.
Talvez seja por isso que alguns, ao envelhecer, encontram juventudes inesperadas: aprendem a conversar com plantas, a colecionar pequenas alegrias, a descobrir beleza em uma xícara de café ou num abraço de neto. É quando percebemos que o corpo pode até se curvar, mas a alma, essa criança descalça e indisciplinada, insiste em brincar.
A existência é só a vigia de portão; mas quem atravessa, sem pedir licença, é sempre a vida.
E então, o relógio antigo de parede, aquele coração mecânico que tanto me provocou, parece, por um instante, perder sua autoridade.
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