Ataualpa A. P. Filho - professor
Hoje vou lhe contar um fato do jeito que se arrasta no tempo. Antes das caravelas aportarem por aqui, ele já existia. Não pretendo aumentar nenhum ponto ao conto. Mas trago algumas intenções: a primeira é explicitar uma tradição oral, que guarda uma traição; a outra é para fazer uma alusão ao que estamos presenciando nesta conjuntura de juros, juras e tarifaços. A terceira fica por conta das asas das imaginações, ou seja, o gosto do freguês pode voar com asas das tanajuras, das libélulas ou das borboletas. A verdade, eu lhe digo: as aves não são donas das asas.
Quem se encanta com a beleza das asas das borboletas, deve manter, na lembrança, a vida no casulo. As tanajuras, após o voo nupcial, praticam a autotomia, cortam as próprias asas, antes de se tornarem rainha de novos formigueiros. As libélulas, como não patentearam a forma de voar, foram imitadas pelos homens, que inventaram os helicópteros.
E neste voo imaginário, recorro às entrelinhas para que elas nos ajudem a abrir espaços na manutenção do pensamento dedutivo. Pelo sim, ou pelo não, o senão espreita as dúvidas. Mas, quando se trata de caos, ou de crise, o óbvio fica explícito. Até o desejo do calado torna-se evidente. Nesses casos, é fácil identificar o pai da criança. Indubitavelmente, filho feio também tem pai. O problema é que alguns não assumem a paternidade. Todavia, isso leva ao foro íntimo que se revela pelo caráter: seja bom, seja mau, cada um carrega o seu. Isso é da pessoa. Porém, o mau-caráter, quando inflado pela vaidade, pela ganância, pelo egoísmo, pela arrogância, é capaz de lesar até a Pátria. Em síntese, várias crises políticas surgiram por vaidades intransigentes: e quem paga o pato?
Agora veja:
Em um período que não havia pix, mas já havia malícia, esperteza e dissimulações, o escritor e historiador italiano Giovanni Francesco Poggio Bracciolini (1380-1459), no livro “Facetiae”, escrito em latim, relatou o episódio de um jovem camponês, não tão ingênuo, que vendia patos.
O mancebo ao passar por uma rua, com a sua mercadoria, uma senhora, da janela, perguntou por quanto venderia o animal. O jovem falou o preço. Mas poderia dar o pato a ela em troca de algumas carícias. Ela aceitou a permuta. Ele, pelo furor juvenil, fez cabelo, barba e bigode. A senhora já cansada em atendê-lo, resolveu dar um basta. E assim travou uma discussão.
Nessa hora, chegou o marido e quis saber o que estava acontecendo. Sedutoramente, ela se dirigiu a ele, dizendo-lhe que queira fazer uma surpresa no jantar. Queria servir um pato, mas não tinha dinheiro suficiente para efetuar a compra, por isso estava a negociar com o rapaz.
O marido perguntou quanto faltava, ela respondeu: “dois vinténs”.
O jovem para sair do flagrante, para se ver livre daquela situação embaraçosa, aceitou os dois vinténs. O marido pagou o pato, mas nem desconfiou que fora traído.
A expressão “pagar o pato” atravessou mares e segue no tempo com o sentido de: “quem vai arcar com as consequências”, “quem vai assumir o prejuízo”. E quem geralmente arca com o prejuízo é quem não tem nada a ver com o problema, isto é, o justo, às vezes, paga pelo pegador.
Não faz muito tempo que se descobriu uma enorme falcatrua no INSS. Milhões de aposentados foram descontados indevidamente. O ressarcimento às pessoas lesadas tem sido feito pelo Governo Federal, com o dinheiro do povo.
Vai sair também dos cofres públicos o dinheiro para cobrir os prejuízos causados pelas altas tarifas impostas pelo presidente dos Estados Unidos aos produtos brasileiros.
Em um passado não muito distante, no período pandêmico, provocado pela Covid-19, o Governo Federal instituiu um auxílio emergencial para ajudar pessoas carenciadas. A crítica sobre essa ajuda aos CPFs invisíveis foi gritante. Hoje a ajuda está voltada para os CNPJs do alto escalão, que atuam no mercado de exportação.
Em um sistema capitalista, teoricamente chamado de neoliberal, prega-se a não interferência do Estado na atuação do mercado, além da privatização de empresas estatais. Mas quando a situação aperta, recorrem ao Estado em busca de socorro. Não é uma atitude sensata querer privatizar o lucro e socializar o prejuízo.
Você pode não concordar, mas hoje, vejo o povo como o personagem do conto da obra de Poggio Bracciolini: traído e tendo que pagar o pato.
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