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terça-feira, 19 de novembro de 2024


Capa 3676

Pelo olhar de Fernanda

Ataualpa A. P. Filho - professor

Foto: Divulgação/Itaú Unibanco
Foto: Divulgação/Itaú Unibanco


Ver o dito pelos olhos. O veredito do olhar. A denúncia pelo silêncio. O tempo penetrado pela dor que ainda lateja, que ainda espera resposta de um passado velado... que lá... onde nunca se soube... esteja...

O olhar de Fernanda sobre a história... sobre o tempo... a face serena... a contemplação do vivido... as têmperas embranquecidas... a lucidez silenciada: por onde anda a justiça?!...

Bela! Bela! Bela! Bravo! Bravo! Bravo! Viva! Viva! Viva!...

Nenhuma palavra em cena, mas tudo dito pelo olhar. O semblante com as cicatrizes do tempo na pele expõe as lutas pelos palcos da vida. Apenas a face na tela com o olhar solto na esperança: fascinante...

O que faz o destino em nossas vidas para deixar a felicidade tão distante?!...

Além do respeito e da admiração, há a reverência a quem se entrega ao ofício de traduzir o sentimento humano.

A minha eterna gratidão à cidadã Arlette Pinheiro Torres, nascida em 16 de outubro de 1929, e à atriz Fernanda Montenegro. Mais uma vez, senti, no seu trabalho, a representação coletiva de uma parcela da sociedade que carrega, no anonimato, a dor impregnada de injustiça.

Senti vontade de aplaudir de pé o olhar de Fernanda Montenegro, interpretando Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, viúva do engenheiro civil, ex-deputado  federal Rubens Beyrodt Paiva, no filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, baseado no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, que relata a luta da mãe para obter, pelo menos, o atestado de óbito, já que o corpo do marido assassinado nunca fora encontrado.

Se Eunice Paiva estivesse viva, teria a mesma idade de Fernanda Montenegro, pois nascera em 7 de novembro de 1929, em São Paulo. Ela veio a falecer em 13 de dezembro de 2018, após 15 anos imersos no Alzheimer. O olhar profundo de Fernanda materializou o distanciamento do presente que o Alzheimer provoca.

Nos segundos em que a tela do cinema encontrava-se cheia do olhar de Fernanda, veio, à lembrança, uma outra cena inesquecível de um filme, que também me comoveu, “Eles não Usam Black-tie”, exibido na década de 80, dirigido por Leon Hirszman, baseado na peça de Gianfrancesco Guarnieri. Ela, no papel de Romana, casada com Otávio, personagem vivido por Guarnieri, ao separar o feijão para catar, diminui a quantia colocada sobre a mesa, em razão do filho que havia saído de casa. As lágrimas que caíam dos olhos revelavam o amor e a dor que o destino sempre crava no coração das mães. É a espada que atravessa a alma das mulheres diante da perda de um filho, de uma filha, do companheiro a quem tanto se entregou. É imensurável essa dor, principalmente quando vem pela via da injustiça...

Gosto do que é dito sem palavras. A arte precisa de silêncio. No filme “Cabra Marcado para Morrer”, dirigido por Eduardo Coutinho, exibido também na década de oitenta, vi um olhar nutrido de silêncio, mas, na inquietude que a liberdade estabelece como instinto de defesa.  A senhora Elizabeth Altino Teixeira, mãe de 11 filhos, viúva de João Pedro Teixeira, líder camponês, assassinado em abril de 1962, ao relatar a luta para sustentar tantas crianças, após a morte do marido e a vida na clandestinidade com o nome de Marta Maria da Costa, continha as lágrimas e soltava o olhar na travessia da vida. O vivido não a “esmorecia”. Ela carregava também o luto pelo suicídio de uma filha, que não superou a perda do pai, nem se conformava com tanto sofrimento.

Ser livre é necessidade dos viventes. Por isso que, em busca da liberdade, desafia-se o medo.

E aqui vale citar uma passagem de “Fedra” de Jean Racine, com tradução de Millôr Fernandes:

“Loucura. Onde estou eu?/ Que foi que eu disse?/ Onde foram parar minha razão e minha vontade? Eu as perdi: os deuses me arrancaram./ Enone, o rubor me cobre o rosto,/ Deixo que vejas demais minhas dores vergonhosas;/ E meus olhos, sem que eu queira, estão cheios de pranto.”

Mesmo com os olhos “cheios de prantos”, as mulheres têm a coragem de revelar o que sentem, apesar das adversidades impostas pelo destino. Essa coragem é a força que não perde a ternura. “Carregar bandeira” é sina das mulheres como diz Adélia Prado em “Com Licença Poética”: “dor não é amargura”, “tristeza não tem pedigree”...

Na quarta-feira passada (14/11), foi concedido à Fernanda Montenegro o certificado que a coloca no livro dos recordes (Guinness Book), por ter reunido o maior público em uma leitura filosófica. Mais de dez mil pessoas assistiram à leitura de “A Cerimônia do Adeus” de Simone de Beauvoir, em 18/08/2024, no parque do Ibirapuera, em São Paulo.

Bela! Bravo! Viva! Fernanda...

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