Ataualpa A. P. Filho - professor
“Quando eu nasci/ Um anjo louco muito louco/ Veio ler a minha mão/ Não era um anjo barroco/ Era um anjo muito louco, torto/ Com asas de avião/ Eis que esse anjo me disse/ Apertando a minha mão/ Com um sorriso entre dentes/ Vai bicho desafinar/ O coro dos contentes/ Let’s play that”.
Esses versos são do poeta piauiense Torquato Neto. Foram musicados por Jards Macalé. Quando eu o via cantando tais versos; cá, “do lado de dentro”, eu pensava: essa canção, “Let’s play that”, é autobiográfica.
Esse “anjo muito louco, torto”, além do Macalé, do Torquato, acho que andou visitando Luís Melodia, Itamar Assumpção, Hermeto Pascoal, Taiguara, Sérgio Sampaio, Hélio Oiticica, Waly Salomão, Raul Seixas, Moreira da Silva, Betinho, Henfil, Jaguar e muitos que viveram na trincheira do anonimato, mas que ergueram a bandeira da Arte para respirar liberdade...
Acho até que foi esse anjo que andou lá por Minas, visitando Drummond. Parece que ele gosta de brincar de abençoar originalidade, irreverência, coragem e resistência para suportar críticas. Gosta de pessoas que não têm a alma pequena, pois sabem que viver vale a pena, apesar do alto preço do custo de vida em liberdade.
E por falar em anjo, preciso citar o esbelto que toca trombeta que visitou Adélia, que afirmou em “Com Licença Poética”: “ser coxo na vida é maldição pra homem.”
Os benditos “coxos” são os que não se rendem, mesmo sem renda, seguem “à margem da margem”, não importa se plácida ou não. Contudo, cantam por uma “Pátria Livre”...
O seguir, o prosseguir, mesmo perseguido, consiste em pôr o pé na estrada da Poesia. “Sem lenço, sem documento”, sem visto em passaporte, aportar nas canções e viajar. “A canção é tudo./ Tem sangue eterno a asa ritmada”, já afirmara Cecília em “Motivo”.
E todos nós sabemos que, um dia, estaremos mudos. Mas quem soltou a voz ao vento sabe que, em algum momento, encontrará um eco, nem que seja em um buquê de vaias desafinadas do “coro dos contentes”. Sonhar ainda não paga imposto. O sabor da liberdade tempera o viver.
O senhor Jards Anet da Silva, nascido em 3 de março de 1943, na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, faleceu em 17 de novembro de 2025. 82 anos de macunaimidade. A tristeza perdeu para ele. Fazia rir para descontrair, mas pelo sério. Fazia pensar pela irreverência, pela arte de viver em parceria. Solidarizava, pois sabia que, para segurar rabo de foguete, só de mãos dadas.
Jards Macalé é mais um brasileiro da Silva que a arte eternizará. Foi pela tv, a primeira vez que o vi, na década de 70. Mastigava pétalas de rosa enquanto cantava. Não lembro a música, nem o canal. Na época, em Teresina, tínhamos a transmissão da Tupi, Globo e Record. Tenho uma vaga lembrança que isso aconteceu em algum festival. Contudo o que ficou na minha memória foi o inusitado: além de tocar, cantar, dançar em apresentação musical, é possível usar uma outra linguagem para transmitir mensagens de inconformismo diante da aspereza de um sistema. E aqui cabe lembrar os versos de “Olho de Lince”, outra canção dele em parceria com Waly Salomão:
“Quem fala que sou esquisito, hermético/ É porque não dou sopa, estou sempre elétrico/ Nada que se aproxima, nada me é estranho/ Fulano, sicrano e beltrano/ Seja pedra, seja planta, seja bicho, seja humano.”
Dessa parceria com Waly, brotou “Vapor Barato”, que se transformou em hino na voz de Gal Costa.
Quando ele esteve em Petrópolis, em 2023, entrei na fila da tietagem para pegar um autógrafo. Levei o livro “Torquatália {DO LADO de dentro}”, de Torquato Neto, organizado por Paulo Roberto Pires. Na folha de rosto, Macalé escreveu abaixo do nome do Torquato: “meu parceiro querido”. Esse é mais um livro que não sai mais de casa.
O título deste texto também é do Torquato. Tirei da coluna “Geleia Geral”, com data de 4 de novembro de 1971, que ele assinava no jornal “Última Hora”. Com “Saudades de Macau”, escreveu:
“Macalé foi para a Europa num momento decisivo de sua carreira. Recapitulemos: tocou violão por aí, profissional e atuante, durante muito tempo. Mas agia no manso até que foi preciso berrar. Gotham City. Aí a tropicarte de Capinam show com Gal, parceria com Duda, Capinam e, logo depois, Waly Sailormoon. O trabalho de Macalé rendia muito, seguia firme e havia quem escutasse.”
Essa ida à Europa foi para assumir a direção musical do álbum de estúdio “Transa” de Caetano Veloso, gravado em Londres.
E, antes de fazer essa viagem eterna, ele foi para o hospital de ambulância, divertindo-se com a sonoridade da sirene. Pediu até para o motorista dar uma voltinha a mais no quarteirão. Dentro da viatura, ligou para a esposa para “curtir o barato”. Após uma cirurgia, despertou e começou a cantar “Meu nome é Gal”. Macalé 10, tristeza 0.
Quando escrevia este texto, recebi uma mensagem com a notícia da morte de Leonardo Fróes. Travou tudo aqui. Permanece o que já foi escrito. Apenas vou lhe falar que várias vezes passei por ele, andando pelas ruas de Petrópolis. Eu o via carregando um silêncio. É mais um que partiu e a Poesia irá eternizar.
O seu “bom dia”, mestre, guardarei enquanto perdurar a minha memória...
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