- MARIO DONATO D´ANGELO
Há palavras que parecem irmãs, mas na verdade são vizinhas distantes. Solidão e Solitude: ambas falam do estar só, mas não dizem a mesma coisa. A solidão é falta, é vazio imposto, é quando o coração clama por um encontro que não vem. É o silêncio que pesa, o telefone que não toca, o quarto que se estreita. Solidão é ausência e dor.
A solitude, ao contrário, é uma conquista. É um espaço de silêncio onde a alma respira. Freud já dizia que é no recolhimento silencioso que se escutam as vozes inconscientes, e, muitas vezes, aquilo que em nós é mais verdadeiro só se revela quando não há ruído externo. Melanie Klein, ao falar da vida psíquica, lembrava que o sujeito precisa, em alguns momentos, se afastar do mundo para elaborar internamente suas angústias, seus amores e suas perdas. A solitude é, nesse sentido, uma oficina secreta da mente.
O problema é que, no envelhecimento, essas duas experiências se confundem aos olhos dos outros. O idoso que se recolhe é muitas vezes invadido por familiares bem-intencionados:
“Vovó, saia do quarto!”, “Vovô, ligue a televisão!”, “Não fique sozinho, isso faz mal!”.
Mas nem sempre faz mal. Às vezes, o silêncio é alimento. O que parece solidão pode ser solitude, e essa diferença é preciosa.
Einstein, ao falar da teoria da relatividade, lembrava que tempo e espaço são conceitos elásticos, dependentes do observador. Talvez a velhice seja o momento em que o tempo também se relativiza. O velho, se me permitem a imagem poética, é alguém que encostou o presente no futuro. O presente acontece às três horas em ponto; o futuro, às três e cinco... Entre eles, resta um vasto território de passado, um universo que só cresce. Ali estão guardados experiências, histórias, dores e delícias que se tornam matéria-prima para reflexão.
Na infância, a vida é uma corrida para frente; na juventude, é um cavalo indomável que galopa. Mas na velhice, o olhar se volta para trás. Não há mais tanto para conquistar adiante, mas há muito para compreender e elaborar. Gregory Bateson, pensador da comunicação e da ecologia da mente, dizia que o conhecimento humano se constrói num tecido de padrões, relações e contextos. O idoso, mergulhado em suas lembranças, é um tecelão silencioso que religa fios da própria história, reinterpreta cenas, redesenha sentidos. Isso não é isolamento: é trabalho criador.
A solitude, assim, não é um fardo, mas um direito. O direito de conversar consigo mesmo, de revisitar memórias, de colher sabedoria nos jardins do passado. O risco é quando confundimos solitude com solidão, e, em nome de proteger, invadimos o espaço vital do outro. Há quem queira preencher todos os vazios com televisão, vozes, estímulos. Mas há silêncios que precisam ser preservados. Nem sempre o que perturba é o vazio: muitas vezes, o que nos cura é exatamente a pausa.
Na sociedade atual, onde o ruído é constante e o tempo é medido em notificações, aprendemos a temer a solitude. Ficar só passou a ser quase um pecado. Mas talvez seja justamente esse exercício que mais nos falta. É na solitude que se escreve, que se cria, que se ora, que se sonha. É ali que se prepara a reconciliação com a própria finitude.
O idoso que olha para trás não está perdido: está revisando, reorganizando, sintetizando. Ele é, em certo sentido, filósofo de si mesmo. E quando a família interpreta seu silêncio como abandono, talvez cometa um erro: confundir maturidade com melancolia. O velho sabe que sua corrida não é mais para a frente, mas isso não significa derrota. Significa apenas que o tempo agora é outro: menos futuro, mais memória. E memória também é forma de eternidade.
É preciso reaprender a respeitar os silêncios dos mais velhos. Reconhecer que há uma dignidade na solitude, um saber que se destila no silêncio. A solidão, sim, pode matar. Mas a solitude pode salvar. Ela não é o vazio: é o pleno. Não é ausência: é presença de si.
E talvez este seja o maior aprendizado da velhice: compreender que, em muitos momentos, viver não é estar cercado de vozes, mas saber se bastar.
Veja também: