Ataualpa A. P. Filho professor
É o caos que testa os nossos nervos. O tempo dilata a nossa paciência. A tolerância conta com a boa vontade dos compreensivos. Mas há limites em tudo que é humano. Se é humano, é limitado.
Os exercícios de alongamento são para melhorar as flexibilidades. Hoje a mobilidade urbana não poupa tempo. Os automóveis ainda não andam sozinhos. Há sempre alguém dentro de um veículo. A precariedade do transporte coletivo é um dos fatores que contribui para a lentidão do trânsito nas grandes cidades.
O estresse proveniente dos engarrafamentos desencadeia uma intolerância que se materializa na agressividade. A violência que se constata no trânsito tem suas raízes também ramificadas na ansiedade, na pressa, na correria imposta pelas metas que precisam ser alcançadas.
O dia de fúria é fruto do acúmulo de problemas que se assemelha a um barril de pólvora que, com pequenas centelhas, explode. O mau humor está entre as consequências dessa agitação sufocante da vida moderna. Quando os compromissos são colocados em uma instância prioritária, o viver fica atado a uma agenda.
Na sexta-feira (04/07), dia em que o Fluminense ganhou do Al-Hilal, havia combinado de fazer uma visita a uma grande amiga que reside na Paulo Barbosa. Marcamos por volta das 15:00 horas. Acordei um pouco mais cedo para fechar algumas pautas. A Marta teria que fazer alguns exames de rotina em um hospital no Bingen. Acionamos o cronômetro cedo para que pudéssemos chegar no horário marcado. Mas não foi possível. Tocamos a campainha às 16:10. Enquanto a Marta apresentava os motivos do nosso atraso, olhei para a janela do apartamento:
Que lindo! As duas indagaram a minha exclamação.
O verde daquela janela!...
Como a amiga mora no nono andar, é possível ver um pedaço de mata atrás de um supermercado que fica em frente ao edifício em que reside. Vi os tons de verde de uma mata sobre um morro que penetravam por uma janela ao lado de um piano.
Essa moldura de um pedaço de natureza surgiu como um oásis para quem já havia se irritado com buzinas desnecessárias, com a lentidão de um trânsito que torna o nosso tempo inútil. Desliguei-me por alguns minutos. O calor da amizade aqueceu a tarde fria...
Há quanto tempo esse piano está aí?
Há mais de 60 anos...
Viajei por uma Petrópolis que não conheci. O remoto presente se destila em lembranças...
Quando olhei para o relógio, vi a realidade novamente: às 18:00 horas, teria que estar em sala de aula. E o relógio marcava: 17:00 horas. Como atravessar a “Avenida”, encarar a Roberto Silveira em dia de Bauernfest, em fim de tarde de uma sexta-feira?
A alternativa mais viável foi pegar um táxi. O transporte por aplicativo não aparecia. Os ônibus lotados e parados. Às 17:15, consegui entrar em um veículo. O motorista, ouvia, pelo rádio do automóvel, o jogo o Fluminense. Ele vibrou com o gol do Hércules. Embora sendo flamenguista, também vibrei:
Esse aí é meu conterrâneo. É um piauiense de fibra.
Passamos em frente do Museu, subimos a Raul de Leoni, por trás da Catedral, pegamos a Avenida Koeler, entramos na Roberto Silveira. Quando o sino da Igreja do Sagrado tocou, já estava na porta do colégio. Acho que o jogo ajudou um pouco. O trânsito fluiu não tão lento. Prometi a mim que não iria passar pelo mesmo sufoco na sexta-feira seguinte. Confesso que tentei...
Chegou a sexta-feira seguinte (11/07), saí de casa às 17:10, da Marechal Deodoro em direção à Montecaseros. Coloquei na mochila, além do material de trabalho, três livros, dois em versos e um em prosa, munição para esperar tranquilamente.
Esperei uns dez minutos, o ônibus apareceu. Embarquei. Abri o livro e, mais uma vez, esqueci as horas. Quem não esquece quando mergulha em Pessoa?...
Mais uma vez ouvi o sino da Igreja do Sagrado, 18:00 horas. Encontrei uma amiga de longa data, parada no ponto, com o olhar no infinito, cumprimentei-a:
Boa noite!...
Oi, querido, de onde você apareceu? Tava aqui tão distraída, esperando o ônibus. Não adianta pegar táxi. O trânsito tá parado...
Foi um oi e um tchau. Eu estava já por conta do atraso. Mas o abraço da saudade quebrou a rotina. E eu tinha acabado de ler os seguintes versos de Fernando Pessoa:
“O essencial é saber ver,/ saber ver sem estar a pensar,/ saber ver quando se vê,/ e nem pensar quando se vê/ nem ver quando se pensa.”
Vi que ela não me viu por “estar a pensar”. Mas nos vimos por um passado extenso de amizade.
É preciso saber desfrutar dos instantes de ternura dentro das fissuras do caos. Assim se evita o estresse, ou pelo menos, ameniza-o.
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