- Mario Donato D´Angelo
O Rio de Janeiro tem dessas: de vez em quando, abre a janela da eternidade e deixa escapar um de seus personagens.
Desta vez, foi Jaguar, cartunista, pasquineiro, boêmio. Chamava-se Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe. Um nome grande demais para um copo de chope. Então ele o encurtou, Jaguar. Do sobrenome ficou apenas a parte mais feroz, mais elegante, mais improvável. Jaguaribe virou felino. E Jaguar não poderia ser mais um nome na lista telefônica do Rio, converteu-se no único jaguar que não corre atrás de presa, não escala árvores e não se deita nas sombras da mata. Era um jaguar urbano, domesticado pela ironia, alimentado a pastéis de camarão e goles de cerveja. O felino que bebia em botequim.
O Brasil andava amordaçado. Os generais haviam transformado a vida pública em quartel. Jaguar, Millôr, Ziraldo, Tarso de Castro e outros reagiram fundando O Pasquim. Era um jornal, mas também uma barricada de papel. No traço de Jaguar havia menos desenho e mais denúncia: ratos lúbricos, troncos falantes, bêbados vomitadores. Um zoológico de nanquim, um cronista que desenhava, que usava pincel no lugar da máquina de escrever.
Foi também Jaguar quem ajudou a fundar a Banda de Ipanema, bloco que desfilava parodiando a seriedade, transformando a praia em carnaval permanente. Um gesto simples: reunir amigos, soprar instrumentos desafinados, rir dos poderosos. Mas que gesto! Tornou-se símbolo de resistência cultural.
E por esse mesmo antídoto Jaguar foi duas vezes parar atrás das grades. Preso, não por subversão armada, mas por cometer o gravíssimo crime de fazer rir. De arrancar gargalhadas dos sisudos que não sabiam gargalhar. De abrir rachaduras no engessamento da alma nacional. Rir, naquele tempo, era ato subversivo. Jaguar foi réu confesso: humorista reincidente, nunca negou seu crime e nem cogitou em fugir...
Um dia, contou com orgulho blasé que teria bebido cinquenta latinhas de cerveja em vinte e quatro horas. Exagero? Estatística? Pouco importa. O que importava era a boemia como religião. Mais tarde, foi aconselhado a deixar de beber, mas não de frequentar bares. Continuava sentado à mesa como um fiel que perdeu a fé, mas não a liturgia: ia ao bar como quem vai à missa, sem comungar.
Com o tempo, Jaguar deixou-se temperar pelo frio da serra. Em Itaipava, ao lado da mulher médica, descobriu outro compasso de vida. Continuava a ser visto em bares, agora em ritmo mais sereno, sem o copo, mas ainda com o olhar atento, como se rabiscasse caricaturas invisíveis dos vizinhos de mesa. O cronista gráfico do Rio tornara-se um cronista silencioso da serra.
Ipanema, aquela dos anos de O Pasquim, foi morrendo aos poucos. Cada fundador que partia levava consigo um pedaço do bairro, que criou a “esquerda festiva”, a bossa nova, que já foi irreverência pura, ironia à beira-mar, gargalhada contra a sisudez. Mas no domingo passado, com o anúncio da morte de Jaguar, percebemos o final de uma época, último sobrevivente, herdeiro final de um sonho humorístico, havia partido, aquele que fez da cidade um território de felicidade zombeteira, nos fez sentir que tudo aquilo acabou, que ficaram só lembranças que irão lentamente desaparecer na poeira da história...
Morreu, como diria Lupicínio, sem recado e sem bilhete, assim como todos que morrem, e ele, como quem fecha a porta de um bar já vazio.
Jaguar morreu aos 93 anos. E o Rio, sempre tão rápido em converter tragédia em saudade, já o imagina transfigurado em onda. Porque Ipanema, sem Jaguar, perde um pouco de sua gargalhada. E, como todo carioca sabe, o mar guarda mais segredos do que a História oficial. É possível que cada espuma no Arpoador seja agora apenas mais uma caricatura de Jaguar contra a morte. Com a ida do último boêmio, do último humorista veterano, a história começou a apagar suas luzes.
Se Paulo Mendes Campos pudesse escrever esta despedida, diria que Jaguar não morreu. Apenas mudou de mesa.
E se houver bares no além, que tragam cinquenta latinhas de entrada. Porque seria uma heresia oferecer menos ao único jaguar da história que preferiu o botequim à floresta...
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